terça-feira, 4 de setembro de 2012

Pra você, Yang

Se eu pedir, você morde forte. Nina Simone sabe quase tudo sobre nós. Mas quase tudo é muito mais do que eu sei. Eu fico sem saber de Nada quando você anda assim, nessa fúria fera mordida, gata, cabelos de chicote, lindos. Eu fico sem saber quanto calor consegue transpirar seu corpo, quantas são as curvas dessa vertigem - nem Hichcock dirigiria, só Nina, que espreita o balanço de nossas sombras, balança o silêncio onde descansam nossos suspiros; Nina sabe quantos dedos seus mistérios casam. Me deixa te usar de aliança, te guardar na minha mão, desfilar seus sins, tocar os sinos das suas demoras. Me deixa bater boca contigo. Bate boca comigo. Bate a boca na minha; a língua, o livro, o verso. Bate o seu verso no meu verso, as tuas costas nas minhas, tuas linhas no meu ponto final.
Fica comigo, sonha comigo, diz que me quer, que eu também quero, mas, quando eu pedir, você morde forte. Não me deixa gostar. Traça um ponto de fuga, me beija, aponta meu norte, me diz a hora. Eu quero você, mas quando a Nina para de cantar é veia aberta, cava o pulso, gaze na boca, eu mordo forte.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Água

Galera, tem que comprar água! As duas garrafas que eu trouxe já acabaram. O calor dessa cidade me mata, e não dá para beber essa porcaria da torneira. Outra coisa, o suporte para fazer gelo é para gelo (que é água também, para quem repetiu a quarta série). Outro dia, fui procurar gelo e achei cubinhos de refrigerante laranja. Já disse que nosso corpo é um terço de água? E que água faz bem para a pele, para os rins...? E que água... Não adianta! Bebam o que quiserem, que eu vou comprar minha água. Insípido, inodoro, incolor. PS: Ia mandar um "você pensa que cachaça é água" na epígrafe, mas achei destilação demais para pouco estômago.

sábado, 18 de agosto de 2012

Paroxítonas paulistas

Amor, por que os paulistas prolongam as paroxítonas? Sempre tônicas, com seus acentos e pose, elas ganham, no paulistês clássica, um circunflexo bombado. Pensa um paulista na ditadura. O pobre revolucionário queria cantar sua música de protesto, mas não podia. CamiNHÂNdo e CanTÂNdo e seGUINdo a canção. O coitado só descansa na canção. Bem que o Roland Barthes avisou que a língua era fascista. Não é coisa para esses comunistas.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Esfigmomanômetro

Hoje mais cedo eu passei na porta da sua casa e quase subi. Quase subi pra 13 ponto qualquer coisa, eu, doze por oito, quase sempre tão estável - de pressão tão previsível, perco a mão quando passo na sua calçada. Quase nada mudou por aí. A prefeitura colocou uma ou duas placas prometendo qualquer coisa que não pude ler - minhas lentes continuam guardadas, você sabe que às vezes eu prefiro mesmo não ver nada. Mas, olha garota, ainda sinto o cheiro de tudo. Ai ai, aquela padaria tem o mesmo cheiro de tarde quente, fugida. Ainda posso sentir seu perfume por aquelas esquinas. Se me concentro, sinto ainda o meu cheiro no seu pescoço, num perfume novo, nem floral nem madeira; nuca. Boca. O cheiro dessa rua ainda é o mesmo que pingava no meu colo, e a pressão era muito mais que doze por oito, muito mais que 13, muito mais que só sangue no coração, essa pressão que a gente tinha era física, barômetro, tempestade de vento, garota.

Aí você vê: eu, que já fui ciclone com você, passo na sua calçada e sinto frio. E sinto cheiros que já foram. E vejo a padaria igual. E quase pego o elevador e subo até o 20. E tanta coisa mudou e eu aqui escrevendo pra você. Olha, garota, eu devo ter enlouquecido, mas o aparelhinho aqui diz que eu vou bem: 12-por-oito. Mas como é fria essa constância.

Será que uma hipertensão tem seu calor?

Do Caju

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Anne Frank

"Este é uma espécie de precursor de "O menino do pijama listrado", que você tanto gostou. Para relembrar a inocência da criança, o passado do mundo, a potência da liberdade. Um livro para o otimismo e a sensibilidade. O coração leve, e a certeza de que tem amor por perto; é o que eu desejo pra você. Veja agora o que Anne te diz.

Tainá - 13/05/2012

ps: o que sempre me parece é que temos o dever de ver o mundo por nós e por quem ficou preso no porão."

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Joga o lixo fora

Morena, tenho acompanhado as mudas que você plantou nesse jardim. Hoje amanheceu um dia frio, daqueles que pedem dois ou mais. Eu era um. Vim ver a pimenta pra tentar arder um tanto, mas elas ainda estão pequenas. Não pude deixar de notar que você esquece de jogar o lixo fora. Toda a vez que venho olhar as mudas vejo moscas no canto da casa, rodeando seus mistérios. Essa semana eu até fiz esse trabalho, mas seu saco já está cheio de novo. Joga fora o que tiver de lixo, morena. Do jeito que seu quintal está, ninguém arde, ninguém pimenta, nada muda. Nâo dá pra florescer assim; joga o lixo fora.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Estourado

Tatá, estourei. Agora é sério! O cartão e a paciência. E não vem pra cima de mim com essa de gostosona não! Aqui se paga, gatinha. Da próxima vez que fizer conta, não conte comigo. Pede pra algum santo te ajudar, porque os preto-véio já tão tudo com a titia aqui. Atenciosamente, Tia Lelê.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Super-cola

Rômulo,  a super-cola está na na geladeira, do lado da cebola. Vê se não esquece de consertar a droga do controle remoto, já que não quer comprar um novo. Sabe como eu fico sem controle! Daqui a pouco tenho que voltar a tomar aqueles ansiolíticos de novo. Ah, e aproveita e veja se consegue colar também essa droga de boca. Você, nem o canal da TV mudam. Tá tudo quebrado nessa porra!
Aproveita também e descasca a cebola. Cansei de chorar.
Da sua querida Helena.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Reconhecendo desconhecidos

Trouxe espumante e cerejas. Corri pelas escadas, respirei difícil na pressa de chegar e ver sua silhueta à meia luz, com incensos pela casa e um bom perfume no pescoço. Abri a porta com as sacolas, buscando uma desculpa qualquer pra fazer festa. Qualquer pequena vitória ao longo da semana - a queda do dólar, um novo CD do B.B. King, um almoço de uma hora e mais meia, qualquer pequena vitória pra fazer festa com você.
Te esperei no sofá até o fim da garrafa. Derrubei os caroços de cereja pela sala, chutei puto o balde de gelo que você me deu. No caminho para o quarto, olhei bem as marcas de dedos pelos rodapés. Na mesa de canto, aquele recado seu. Reli, ainda descrente. As mãos que sobem pelas paredes também brincam despedidas, voltam, fazem charme, sempre foi assim. Hoje não. Não mais remeto respostas, escrevo no verso da folha, mais por mim do que por você: minha pequena vitória é te deixar ir, mulher.
Talvez o próximo inquilino encontre esse papel e faça um poema - eu sempre quis te escrever um poema. Talvez ele nem leia. Talvez ele só saiba que foi bom quando limpar seu cheiro das paredes.


Ass: O antigo morador

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Nem um pouco intactos

Rita, vim aqui te buscar. O porteiro disse que você saiu, mas sua mãe me deixou subir, acho que ela gostou da camisa de botão. Mariana está um pouco desconfiada. Ela me olha com o canto daqueles olhos que você e ela puxaram do Seu João. Não sei se é pena ou raiva. O que você disse a ela? Não importa. O que importa é que eu vim aqui te buscar, Rita. Eu errei com você e sinto tanta raiva de mim que nem sei como o papel suporta a pressão dessa caneta. Eu não suporto, Rita. Eu rasgo. Eu já rasguei, Rita. Vem me estancar. Eu te amo mais que macarrão com queijo. Volta pra casa. Ass: Querido

terça-feira, 24 de abril de 2012

Intactos

Querido, fui embora. Amor não é o bastante. Sexo não é o bastante. O seu macarrão com queijo eventual não é o bastante. Está quase tudo intacto.
O armário ficou com um buraco deixado pela ausência das minhas roupas. Tem comida na geladeira para uma semana. O tempo de você achar uma empregada ou contratar a sua mãe para o serviço. Deixei um livro de presente na sua cabeceira. Não consigo passar da página 11. Levei o roteador.

Rita

domingo, 22 de abril de 2012

Sinal de vida

João, querido, cheguei bem. Na sexta tomamos uma garrafa e comemos aquela tal pizza de pêra com cambert, que eu e você nunca conseguimos comer juntos. Comi com seu desejo e vou te contar que foi das vezes mais deliciosas. Se eu fosse você, corria agora pra lá. Peguei um avião estranho; pessoas bateram palmas quando aterrissou. Fiquei com medo. Será que elas sabiam de algo que eu ignorava? Que seja. Lembrei de te perguntar se precisa de teste de charme para ser aeromoça. É realmente impressionante, deve precisar. Olha, não pude te escrever antes porque não parei desde quando cheguei. Brasília é uma das cidades mais estranhas que já vi. Por vezes, me sinto numa maquete escolar. Num jogo de computador, com um céu tão bem programado quanto as ruas que não têm cruzamentos. Ah, que céu...! Esse lugar deve ter uma sala de controle só para as nuvens, com um cara que espalha chumaços de algodão no azul do teto. J. é uma anfitriã incrível. B. cresceu, assinalou as curvas, põe vermelho na boca e é uma mulher linda. Eu poderia falar horas sobre esses dois dias, mas não tenho muito tempo agora; Caetano vai cantar no cerrado. Com carinho, T. ps: você é, de longe, o melhor vendedor de geladeiras que já vi.

Altos

Rita, li na revista essa semana que os altos são mais felizes que os baixos. Dos meus 1,90m de altura, sou obrigado a discordar. Felicidade não é uma questão de altura, mas do nível e do tempo em que se passa embriagado, de cachaça, de cigarro ou mesmo da TV em um sábado à tarde. Falando em TV, me arrependi da assinatura que fiz. Antes eu via meia dúzia de canais passando a mesma merda de graça, agora são mais de 50, e por 60 conto! Como dizem, felicidade custa caro. Daqui a pouco até as putas entram em greve por reajuste na tabela de preços.

Saúde e sorte,

Ricardo.


sábado, 21 de abril de 2012

A crise da pós modernidade

Pai,

Vi um livro na sua estante muito estranho ontem à noite. O título era "O mal estar da pós modernidade", de um autor com um nome difícil. Na hora já achei que esse cara deve ser muito burro, porque eu, um bebê, já sei qual o problema dessa parada antes mesmo de ler. E posso explicá-lo em poucas palavras, ao contrário desse livro grosso e chato.
A primeira causa do mal estar está na própria palavra. "Pós-modernidade" já é quase uma frase! Segundo, que nada a ver isso de ser moderno. (Que dirá pós-moderno!) Não quero ver meu papai de pós-modernice por aí. Ser vintage é tendência.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Engolir

Professora,

Fiquei em dúvida se era certo escrever engoli à seco, assim com crase. Esse acento tão blasé! Tenho pelas crases um sentimento de ódio e atração. São tão donas do seu próprio espaço, coroando a primeira letra do alfabeto. Sabe que o Enem está chegando, e não quero perder minha vaga na faculdade por conta dessas crases. Preciso dominar a chata.
Mas enquanto ela está fera, decidi que deveria tirar o seco. Coloquei, em troca, um sapo, assim verde e gosmento. Engolir um sapo, pois bem. Mas sapos também não me agradam. Pulam e coaxam e acabam tirando a secura da engolida. Ao neutralizar a crase, o sapo aniquila o seco. Acho melhor não engolir. Entre secos e gosmentos, fico crase, muda e áspera.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Tira a roupa

Querida, esqueci a roupa no varal. Ela ficou lá balançando pendurada enquanto eu engolia o Sucrilhos. Aliás, lembra de comprar leite. O meu acabou. A noite foi boa, mas hoje ainda é véspera de sexta, e o tripalium me espera. Quando chegar, o açoite é seu. Minhas olheiras crescem na proporção do desejo.
Parece que vai chover, então não esqueça de tirar a roupa. A minha e a sua. Te vejo mais tarde.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Pro-fundo

Mãe,

Revirando gavetas, encontrei um antigo diário seu. Pus o olho na fechadura, com todo o respeito que tenho às dilacerações escritas - em algum tempo, tão pesadas que só cabem nos fundos das gavetas. Esses fundos - como admiro! - tão bem revestidos de poeira e tão cautelosamente calculados, que não só sustentam o peso da memória, mas também espantam os narizes intrusos.
Não ia abrir, mas folhas caíram, meia dúzia de frases me escaparam, e então percebi que era um diário de gravidez. "Já sinto a vida dentro de mim", você escreveu, aos 5 meses de gestação.
Achei bonito te ver. O fundo da gaveta mostra mais do que a porta aberta.

T.

domingo, 15 de abril de 2012

Ei,

eu e João criamos um blog de recados. Você sabe que "fechando e abrindo a geladeira", na música do Cazuza, sempre me intrigou. Não entendia nada, pra falar a verdade. Até que um dia eu descobri que tinha a ver com aquela mania de abrir e fechar a porta da geladeira na ansiedade, você sabe como é. Parece funcionar. É mesmo um lugar mágico esse, não? Um pólo norte em pleno verão do Rio de Janeiro; um objeto muito obscuro. Nossas inquietações parecem em casa.

Com amor,

T.

sábado, 14 de abril de 2012

Descongela

Amor, a geladeira nova chegou. Tem lasanha no freezer e palavras na congelador. Só colocar no microondas. Não comprei o refrigerante Zero. Prefiro gorda do que chata. Bjs do seu gatão.